domingo

DEGUSTAÇÃO:

Capítulos de O Diário das Revelações, para que o leitor possa experimentá-lo:




I

UM COMEÇO CONFUSO


                    Uma alegria muito grande crescia em meu coração naquele instante, não era por qualquer motivo, também não era uma alegria típica das crianças de minha idade, era muito mais. O tormento não havia acabado, mas já havia data e hora agendadas para que acabasse.

Naquela época, eu tinha de nove para dez anos, minha irmã estava para completar dezesseis. Vivíamos há uns dois anos naquele porão, éramos quatro pessoas, eu, minha irmã, minha mãe e meu padrasto.

Era um bom bairro, Campo Grande, próximo de Interlagos. Lá existiam boas casas, a burguesia desfilava com seus carros modernos, seus trajes da moda e seus narizes empinados. Eu não sou contra o dinheiro, muito menos contra as pessoas que o possuem em abundância, sou contra a falta de humildade que atinge certas pessoas. Humildade não tem nada a ver com falta ou sobra de dinheiro, e sim com o caráter de cada um, e lá, encontrei algumas pessoas sofrendo dessa “doença”, que por coincidência eram estáveis financeiramente.

Tenho boa memória, ao menos é isso que me dizem por ai, inclusive essa memória é causa de alguns sofrimentos, pois não conseguir esquecer, significa lembrar-se dos momentos ruins também. Minha primeira lembrança é de quando eu engatinhava, utilizando um macacão amarelo, eu tinha o péssimo hábito de engatinhar para trás, e isso me fez ficar preso em baixo de um móvel da casa, chorei alto, pois até hoje me lembro do susto que tomei, e logo minha mãe veio correndo me socorrer. Não vou aqui contar maiores detalhes, simplesmente sintetizar o momento que tudo começou.

Minha mãe sempre foi uma mulher sofrida, doente psicologicamente, sofria distúrbios de personalidade, mas lutava muito, do jeito que sabia, para conseguir pôr comida dentro de casa. Sua visão de vida e mundo era muito peculiar, assim como sua visão de relacionamento. Ela dizia que havia sofrido muito quando se juntou com meu pai, e que a partir daquele momento, ganhou um trauma muito grande em relação aos homens, para ela nenhum prestava.

Um dia, minha mãe me pegou pelas mãos e saímos. Não sabia para onde, mas lembro-me perfeitamente que, dentro do ônibus, ela ficava falando só, o tempo todo. Não lembro onde morávamos naquela época. Depois de um tempo razoável no ônibus, descemos em um ponto e perguntei para ela onde estávamos indo, ela me respondeu:

- Você não queria conhecer o Zé Bétio? Então filho, estamos indo na rádio vê-lo.

Eu fiquei empolgado, ouvia junto de minha mãe, toda noite, o programa do Zé Bétio, adorava ficar imitando o bordão do programa: “Fala Zé... Falo, falo sim”.

Entramos em uma sala que, das quatro paredes, uma delas era um espelho enorme. Todo mundo que ia ao programa do Zé Bétio naquela época, ganhava um pacote de bisnaguinhas Seven Boys, eu vi que o pacote estava abaixo do espelho. Tinha cerca de três microfones no ambiente, mas nada de ver o Zé Bétio. De repente, uma voz grossa ecoou vinda do teto da sala:

- Boa noite Dona Iracema, logo entraremos no ar novamente, vou fazer umas poucas perguntas, e depois a senhora fala o motivo pelo qual veio aqui, tudo bem?

- Tudo bem seu Zé Bétio.

Um pequeno Jingle tocou, pudemos ouvir pelo teto também, em seguida o radialista falou:

- Boa noite a todos, hoje em nossos estúdios estão a Dona Iracema e o filhinho dela. Boa noite, Dona Iracema!

- Boa noite, seu Zé Bétio.

- E você menino bonito, qual é o seu nome?

Esse foi meu primeiro momento constrangedor em público, tudo bem que era uma rádio, ninguém estava me vendo, mas lembro de que minha vergonha era tanta, que não consegui me mexer, meu rosto queimava. O radialista me perguntou mais umas duas vezes, vendo que eu não destravaria, minha mãe disse:

- Ele é muito envergonhado.

- E a senhora Dona Iracema, o que veio fazer hoje aqui na rádio? – Perguntou o radialista.

- Eu vim fazer um pedido, na verdade, eu vim dizer que estou em busca de um novo amor.

- Olha só gente, e quantos anos a senhora tem Dona Iracema?

- Trinta e Dois.

- E como deve ser esse homem, Dona Iracema?

- Tem que ser carinhoso seu Zé, aceitar que tenho dois filhos, e o mais importante, ter casa própria, pois não quero mais morar de aluguel.

Nesse momento, meu rosto queimou ainda mais, pois mesmo tendo três anos apenas, não me perguntem como, pois eu também não sei, eu já tinha total noção do que era o interesse, e sabia que minha mãe estava praticamente vendendo-se para aquele, que a aceitasse com dois filhos e tivesse uma casa própria. Não a julgarei por isso, pois não conheço os reais motivos que a levaram a ter essa ideia, mas como já citei antes, a visão particular que minha mãe tinha da vida e do mundo a fazia ter ideias como essa.

A partir desse momento, minha memória fragmenta-se bastante, e minha próxima lembrança, já é morando na casa própria do homem que minha mãe conheceu, a partir do pedido na rádio. Era um descendente de japonês, chamado Sadao. O mais estranho desse homem, era a forma como eu o via, pois todas as memórias que tenho dele, me remetem a um homem preto, e quando digo preto, não faço referência à raça e sim a cor. Tenho absoluta certeza que não existe ninguém daquela cor, não há uma raça humana que desenvolva aquele tom de pele.

A verdade é que, todos que o conheceram, me disseram que ele era como todos os descendentes de japoneses. Eu não me sentia bem perto dele, me gerava repulsa. Era uma pessoa porca, comia, deixava vários grãos de arroz e feijão caírem na mesa e no chão, e depois minha irmã e eu tínhamos sempre que limpar.

Lembro-me de uma vez que voltando da feira, minha mãe havia comprado aquelas miniaturas de vassoura para mim, e eu estava entusiasmado para utilizá-la, ajudando na faxina de casa, claro que tudo era uma grande brincadeira. Enquanto estava varrendo a sala junto com minha irmã, o Sadao, deitado no sofá, ficava dizendo-nos onde estava sujo, para que fossemos limpar. Acabávamos de limpar e ele logo apontava novo lugar. Ele sorria de uma forma debochada, como se estivesse sentindo prazer em ficar deitado no sofá, mandando-nos limpar os cantos da casa.

De qualquer forma, o que ocorreu pouco tempo depois, foi que o Sadao enlouqueceu, na verdade ele deve mesmo, é ter exposto mais a loucura que era totalmente perceptível, até mesmo para um garoto de três anos de idade. Dentre suas loucuras, ele acreditou que teria que matar minha irmã a facadas, não me lembro do motivo disso ter ocorrido, ou o que o levou a isso, lembro-me apenas do burburinho que tomava conta da casa todos os dias, entre vizinhos e parentes que iam nos visitar.

Quando essas memórias batem na porta de meus pensamentos, fico matutando que o pedido de minha mãe, foi um homem carinhoso com ela, que aceitasse que ela tivesse dois filhos e que morasse em imóvel próprio. Bem, é bem claro que ele não era carinhoso com ela, querer matar um dos filhos a facada, com certeza não significa aceitar o fato de a mulher já ter dois filhos. Creio que minha mãe pensava: “Ao menos a casa própria ele tem”.

Era um imóvel grande, uma sala ampla, dois quartos que davam para a sala e uma cozinha que era quase do mesmo tamanho da sala. Ao fundo, um terreno muito espaçoso e pouco construído, tinha apenas um cômodo, que era utilizado como quartinho de despejo. A garagem tinha espaço para quatro carros. Ficava na rua Diogo Martins, no bairro do Campo Limpo, na periferia de São Paulo, divisa com o município de Taboão da Serra.

A rua Diogo Martins se inicia com uma subida bastante íngreme, ao término dessa subida, torna-se uma reta e segue até encontrar a favela do Rebouças, onde termina. Inicia com números baixos e chega até o número mil e alguma coisa. Na parte de baixo da rua, antes de começar a subida, tem um córrego passando, eu nunca soube o nome daquele córrego, acho que é Pirajuçara, mas não tenho certeza. Das lembranças mais estranhas que tenho sobre esse córrego, é de uma vez que eu e minha irmã estávamos em casa fazendo faxina. Alguém veio gritar em nosso portão, dizendo que estava acontecendo alguma coisa no rio, pois tinha vários policiais. A casa que morávamos ficava no final da subida, portando descemos a rua correndo, minha irmã naquele momento esquecera inclusive de largar a vassoura em casa, e desceu com ela nas mãos. Ao chegar lá, vimos os bombeiros alçando o corpo de um homem, já bastante inchado, provavelmente pela ingestão da água podre do córrego. Alguém havia matado aquele homem, ninguém sabia o porquê, somente que ele havia sido vítima de assassinato.

Voltando ao Sadao, minha mãe resolvera que o melhor a ser feito era chamar meu avô e a sua mulher, que não era minha avó, mas que eu chamava carinhosamente de Tia Avó Cidália, e pedir para que eles nos levassem até a cidade de Marília, até que ela resolvesse o problema. Evidentemente eu não fui avisado disso, simplesmente um dia eles chegaram, minha irmã e eu arrumamos nossas coisas e fomos até a rodoviária do Tietê. Eu chorei muito, sempre fui muito apegado a minha mãe, já minha irmã, mais forte e mais velha, não demonstrou sinal de abatimento, lembro-me de sua carinha de alívio. Acredito que ela tenha ficado sentida também, por ter que se afastar de nossa mãe, porém o medo que ela vinha passando todos os dias, por conta das loucuras de Sadao, dava-lhe certo ar de alívio.






II

MARÍLIA


                    Esse é um trecho de minha vida que não pode faltar em minhas histórias. Lá, eu vivi momentos de muita angústia, pois sentia uma saudade muito grande de minha mãe, junto com a preocupação pouco típica para uma criança que completara a pouco, quatro anos de idade. Assim era também a preocupação e o zelo que eu tinha com minha irmã. É evidente que ela, sendo mais velha, cuidava de mim o quanto podia, porém eu era um grande protetor para ela. Força eu não tinha naquela época, mas sempre tive uma garganta muito potente, então qualquer coisa que via que estavam fazendo com minha irmã, que eu não gostasse, eu abria a boca e chorava o mais alto que podia, devia ser irritante, mas acho que isso ajudava a acalmar os ânimos. Minha Irmã, escorpiana da cabeça aos pés, nunca foi uma pessoa fácil. Sua personalidade forte, somada aos traumas de infância que havia sofrido antes de meu nascimento, faziam dela uma pessoa intragável quando desejava, e por mais que ela estivesse esmagada por dentro, seu exterior estava demonstrando soberania, a típica pessoa que apanha de nariz empinado, e depois que termina de levar a surra, diz que não doeu, só para provocar mais. Sempre foi uma pessoa difícil de entender, fechada dentro de seus pensamentos, exteriorizava aquilo que desejava e guardava o resto. Aparentemente fria e calculista, irritava as pessoas com muita facilidade. Claro que, isso em uma pré-adolescente de onze para doze anos, não causava estragos, porém, éramos rodeados de pessoas que continham uma ignorância cultural, provinda de pessoas que migraram do estado da Paraíba, para o estado de Mato Grosso do Sul. Migração que fora feita a pé, durante quase quatro meses de viagem. Austeridade em excesso, machismo e muitos preconceitos, faziam com que eles nos vissem como crianças mal educadas. Eu ainda era protegido por ser homem, e pelo “fator fofura”. Minha irmã, sendo mulher e mais velha, já tinha que, na visão deles, entender qual o papel da mulher na sociedade. Visto que para eles, mulher servia para cozinhar, lavar, passar, cuidar da horta, fazer sexo e cuidar dos filhos, visão que minha irmã jamais aceitaria.

Porém, não são apenas lembranças ruins do tempo que passei em Marília. Primeiro moramos em uma chácara que dizíamos que ficava em Marília Velha, nesse lugar eu fui uma típica criança de roça. Minhas roupas, quem fazia era minha Tia Avó Cidália, mulher de meu avô. Eu tinha poucas obrigações, como por exemplo, levantar de manhã bem cedo e ir recolher os ovos no galinheiro. Como eu nunca apreciei acordar cedo e achava nojento pegar os ovos cagados das galinhas, detestando também quando elas me bicavam, eu chegava até os ninhos, se uma galinha estivesse sobre os ovos, punha a mão rapidamente em seu peito suado, e a arremessava o mais longe que eu podia. Naquela época, eu era o terror do galinheiro, deixava todas as galinhas agitadas, e por isso levava algumas broncas de minha tia avó. Porém, sempre fui responsável pelo galinheiro, com exceção das reformas que eram necessárias, colher os ovos, limpar e dar de comer às galinhas, era tudo de minha responsabilidade. A pior parte era limpar, tirar as espigas de milho velhas e varrer as fezes secas. Normalmente recebia várias bicadas, porém desde pequeno, não gostava de machucar nenhum animal, então eu utilizava a mesma técnica da colheita de ovos, arremessando a galinha o mais distante possível, isso as assustava, mas não as maltratava.

Já minha irmã, pôde sanar a curiosidade, que acredito que a maioria das crianças tenha. Pegou um ovo que estava sendo chocado e, para certificar-se de que existia realmente um pintinho dentro dele, enfiou-lhe um prego. Disse ela que a casca começou a ficar avermelhada, e ela assustada, jogou o ovo no mato, que ficava próximo do galinheiro.

Outro trabalho de nossa obrigação, era fazer as réstias de alho. Entrávamos em um galpão cheio de cabeças de alho, sentávamos em caixotes e começávamos a trabalhar. O problema é que até hoje, eu nunca consegui fazer uma réstia sequer, minha irmã normalmente fazia as dela e as minhas.

Ao entardecer, o que eu gostava de fazer, era ficar vendo os pombos de meu tio voltarem para o pombal, que ele havia construído no meio da horta de minha tia avó. Eram incríveis, quando o relógio marcava dezessete horas, os pombos, todos branquinhos, começavam a chegar.

A casa da chácara em que morávamos era velha, toda feita de madeira. Meu avô e minha tia avó dormiam em um quarto, meu tio e minha tia, eu e minha irmã, dormíamos no outro quarto, em beliches. A casa resumia-se em uma cozinha, dois quartos e um banheiro. Não me recordo de ter assistido televisão lá, acredito que eles não tinham.

Quando chegava a hora do jantar, existia um ritual a seguir, antes de fechar a única porta da casa, que era a da cozinha. Eu, minha irmã e minha tia avó, pegávamos cada um, um pano de prato e começávamos a tocar as moscas, que eram muitas por sinal. Assim que a maioria tinha saído, fechávamos a porta e íamos comer. Lá para as dezenove horas, não tinha mais o que fazer, lembro-me de que ia para o quarto com minha irmã, acendíamos a vela de sete dias para o anjo da guarda, fazíamos uma oração e íamos dormir. A pobreza era tão grande nessa época, que para cada dois anjos da guarda, existia uma vela de sete dias, que só podia ser acessa a noite, antes de dormir, e apagada logo cedo ao acordar, a vela durava no mínimo um mês. Naquela época eu não tinha religião, o povo todo era católico, mas não me obrigavam ir à igreja, assistir a missa ou confessar meus pecados, acredito que por eu ser novo demais.

Eu gostava de brincar no meio do mato, corria por uma trilha de terra, que ficava ao lado da horta, seguia em frente até chegar ao chiqueiro onde ficava um porco muito gordo. Não lembro o que, mas eu ficava conversando com ele, os sons que ele emitia me deixavam com medo, porém, ele estava preso dentro de uma espécie de jaula e eu sabia que não corria risco nenhum. Às vezes, eu passava da jaula do porco e ia para o meio do mato. Eu não tinha muitas experiências até então, mas brincava que estava perdido, enfrentando não sei o quê. Quando eu voltava para casa, estava com a roupa tão cheia de carrapichos, que mal conseguia andar. Minha irmã e minha tia avó me mandavam ficar quieto, e tiravam um a um, com todo carinho, todos os carrapichos. Como eles espetavam a pele, eu ficava chorando do primeiro ao último.

Minha tia avó tinha quatro cachorros, o Cristian, o Ralf, a Gretchem e o Rex. Todos vira-latas, a Gretchem era a mais brava deles, matriarca e protetora, muito ciumenta, não gostava muito quando eu ficava perto de minha tia avó, porém fora essa ocasião especial, aonde eu ia, ela ia atrás para cuidar de mim, isso acontecia com minha irmã também.

Certo dia, na época eu não sabia por que,eles resolveram fazer uma festa em nossa casa, um grande churrasco. Convidaram todos os vizinhos, até um caminhoneiro que queria casar com minha tia, que chamávamos de Joãozinho, foi convidado. Eu gostava dele, ele era amigo de um tio meu, que também era caminhoneiro, lembro que quando os dois chegavam, deixavam eu e minha irmã ficar brincando nas boléias dos caminhões. Joãozinho era uma pessoa muito engraçada, baixinho, barrigudo, calvo na frente e cabeludo atrás, uma barba tão grande, que tocava abaixo de seu peito e uma voz bem fininha.

Todos estavam comemorando muito, até que um dos meus tios chamou o Joãozinho e meu outro tio, seguiram pela trilha de terra que eu costumava brincar, pouco tempo depois, pude ouvir o porco gordo soltando altos grunhidos, corri para o colo de minha tia avó, a gretchem não gostou muito, mas sabia que eu estava com medo. Minha tia avó me falou que estavam matando o porco para comemorar, que o churrasco era por que havia acontecido uma coisa muito boa, e que não moraríamos mais naquela casa.

Curioso, eu queria saber por que o porco estava fazendo tantos barulhos estranhos, queria ver o que meus dois tios e o Joãozinho estavam fazendo com ele. Pedi permissão à minha tia avó para vê-los, e ela disse:

- Pode fio, você é homem macho, tem que aprender essas coisas mesmo.

Quando saí do colo dela em direção à porta, notei que a Gretchem me acompanhava, e sabia que não iria sozinho até lá. Fui caminhando tranquilamente junto com a cachorrinha, quanto mais perto chegávamos, mais alto ficavam os gritos do porco, eu começava a ficar assustado e os passos cada vez mais lentos. A cachorrinha fazia o mesmo, até chegarmos bem perto do chiqueiro. A visão foi avassaladora, eu me lembro perfeitamente, o Joãozinho estava segurando as patas traseiras do porco, um tio meu estava segurando as dianteiras e o outro tio, fazendo um buraco gigantesco nas costas dele, com um facão. Ele não havia apenas enfiado o facão, mas depois disso, fazia movimentos circulares com ele, nas costas do porco. Fiquei tão estarrecido que demorei alguns segundos para me recuperar, assim que voltei a mim, dei um grito de horror tão alto e tão agudo, visto que eu era apenas uma criança, que a cachorrinha se assustou e soltou um alto uivo também. Virei de costas para aquela cena e sai em disparada, a Gretchem fez o mesmo, porém pela primeira e única vez em minha vida, consegui correr mais que um cachorro, chegando primeiro ao colo de minha tia avó, deixando a cachorrinha para trás.

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Antes disso, lembro-me claramente de outra cena que muito me machucou. Meu tio mais novo acabara de voltar do exército, e como a maioria, foi de um jeito e voltou de outro. Tornou-se mais agressivo, menos companheiro de sua mãe, minha tia avó. Ele não queria trabalhar fora para trazer dinheiro para casa, um molde bastante antigo de família, onde todos devem colaborar para trazer o sustento para dentro de casa. Numa das diversas discussões que ele e minha tia avó estavam tendo, ela disse:

- Seu vagabundo, você não trabalha e não traz comida para casa, hoje não temos mistura, não podemos matar nenhum frango, seu pai – Meu avô – trabalha como um louco, o que você quer da vida?

Ele fechou a cara e pegou sua espingarda. Eram quase dezessete horas. Dirigiu-se até o início da horta, que ficava próximo da casa, quando os seus pombos brancos começaram a pousar no pombal, que ele havia feito para criá-los, ele mirou um a um e os foi matando. Eu chorava bastante, pois além de gostar dos bichinhos, era um programão ficar vendo-os pousarem e entrarem na casinha. Eu pedia para ele não matá-los e torcia para que após o primeiro tiro, os outros fugissem, porém, já acostumados com aquela rotina, todos foram alvejados. Depois disso, meu tio dirigiu-se até o pombal, pisoteando as hortaliças que minha tia avó cultivava, deixando-a ainda mais brava, e voltou segurando os pombos mortos pelos pés:

- Pronto, mistura para hoje já tem! – Disse ele à sua mãe.

Naquela noite, minha tia avó preparou os pombos e os fritou para a mistura, enquanto todos estavam a mesa se servindo, minha irmã pegou a travessa onde estavam os pedaços dos pombos e me disse:

- Quer pombo?

- Não! – Respondi, engolindo o choro.

Foi como eu disse. Minha irmã somente expunha os sentimentos que desejava, e mesmo sentida com a morte dos pombos, que ela também gostava, preferiu comê-los, ao ficar sem mistura. Já eu, comi arroz e feijão naquela noite. Os demais presentes a mesa, nada falaram, pois estavam com suas bocas cheias.

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A festa estava muito boa, todos comiam e bebiam a valer, até mesmo eu, resolvi comer o churrasco do porco com mandioca, e confesso que achei uma delícia. A primeira situação, com os pombos, foi mais difícil.

Não lembro quanto tempo depois, mais sei que foi breve, estávamos enchendo a carroceria do caminhão de meu tio, para fazer a mudança para a casa nova, que meu avô havia comprado. Iríamos morar agora em Marília Nova, era assim que chamávamos naquela época. Era uma ótima casa, uma ampla garagem toda no piso frio, assim como o resto da casa. Sala e cozinha amplas, um banheiro lindo, os quartos continuavam sendo dois, mas muito mais espaçosos. Havia um lindo jardim, que podia ser visto da janela do quarto em que eu dormia com minha irmã e meus tios. O fundo da casa era de terra, e tinha um forno de barro, que o antigo dono usava para fazer sabão, aproveitando esse pequeno espaço que lembrava a antiga casa, minha tia avó mais que depressa, providenciou um galinheiro, visivelmente menor que o da chácara, mas grande o suficiente para me dar trabalho ao limpá-lo, e lembro que as galinhas desse galinheiro, não sei por qual motivo, bicavam muito mais que as outras.

Meu avô tinha dois vícios, o tabagismo e o jogo. Ele adorava um carteado e a loteria, eu sempre o via com um cigarro na boca. Muito tempo depois, descobri que foi um desses vícios, que gerou aquela melhoria de vida tão súbita, ele havia acertado na loteria esportiva e ganhado um bom dinheiro.


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3 comentários:

  1. Bem não podia deixar de comentar, tudo que leio comento, acredito que como eu todo autor tem suas criações como se fossem seus filhos, gerados pela sua alma, e que é um incentivo saber que suas obras estão sendo lidas e aceitas, a leitura me prendeu do inicio ao fim, fiquei bem curiosa, costumo devorar textos, tanto que olha a hora que ainda estou lendo, você escreve muito bem, e uma coisa que admiro é
    o escritor que se expressa através de uma linguagem popular, acredito que é o primeiro passo para a obra ser difundida com mais facilidade, gostei do conteúdo, parabéns abraços Luconi

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